quarta-feira, 6 de maio de 2015

A criança autista

A criança com autismo se isola das pessoas. Foge do olhar e da voz dos outros, sobretudo quando se fala diretamente com ela.

O que caracteriza a voz humana e o olhar que faz com que se fuja deles?

Tanto o olhar como a voz implicam a subjetividade daquele que olha ou daquele que fala. Portanto, nesse âmbito há sempre uma dimensão do imprevisível. Não é difícil observar como a criança autista foge do olhar e da fala dos outros. Através dos testemunhos dos autistas podemos compreender que o sentido da comunicação não é evidente para eles. Isso porque falar não consiste apenas em passar informações, mas porque as palavras, ao serem ditas, deixam escapar os elementos propriamente subjetivos da pessoa que fala. E isso é o que retém a criança autista e faz com que ela se afaste. É como se ela se perguntasse: “Por que ele fala comigo? O que ele quer de mim?” Diante da dificuldade de dar sentido a essas perguntas, ela pode se sentir invadida por um sentimento de estranheza e de angústia.


Qual é a consequência dessa recusa da voz, das palavras dos pais, dos educadores e do resto das pessoas que a rodeiam?

A consequência de tudo isso é que, ou bem ela não fala e se mantém num mutismo ou, se concede em fazê-lo, ela se limita à repetição de uma palavra ou de fragmentos de frases que escutou em algum lugar.
Às vezes as palavras que ela escuta são apenas “ruído” para ela e ela guarda apenas algumas que lhe interessam particularmente.

Por que tanta dificuldade para falar?

Porque não é a mesma coisa compreender uma linguagem, inclusive conseguir pronunciar palavras, do que falar.
Há uma distância e uma diferença entre pronunciar e repetir palavras, e falar com os outros. Para poder aceder à função da fala capaz de se organizar num dizer ao outro, é necessária a interação com essa outra pessoa. Portanto, a recusa da criança autista aos outros lhe impossibilita ter acesso a essa função fundamental da palavra: a função de falar com os outros assim como aquela de escutar os que a rodeiam aceitando suas diferentes maneiras de se explicar.
O testemunho de Donna Williams, uma pessoa com autismo, nos ensina sobre a diferença entre repetir as palavras e utilizá-las para falar: Eu quero um guia que me siga. Estou num mundo de palavras que não me servem para falar. Eu gostaria de sair dele para compartilhar meu mundo com os outros. E os outros com o meu.

O que fazem as pessoas com autismo?

Como elas se organizam se vivem a presença dos outros de maneira tão intrusiva e isso lhes impede de aceder à função da fala para se organizar simbolicamente?

O que elas fazem, além dessa operação de isolamento e de defesa?


As crianças com autismo tratam de fazer para si um lugar na vida, a partir de si mesmos e a partir de um objeto que pode ser qualquer um que escolham e que, de alguma maneira, poderíamos dizer, as complete. 
Se nos fixamos no que elas fazem e não naquilo que supostamente deveriam fazer, poderemos captar sua intenção de alcançar aquilo de que carecem. Com efeito, suas repetições, seu jogos de alternância (abrir-fechar, ir-vir, acender-apagar) são esboços, ainda que falhos, para alcançar o simbólico; quer dizer, para ordenar simbolicamente o mundo.
Estas alternâncias são às vezes consideradas como estereotipias, condutas sem nenhuma função e se opta por tentar suprimi-las. Entretanto, temos que levar em conta que se trata de algo decidido que a criança faz, algo que lhe serve de algum modo para se acalmar, por exemplo. É fundamental levar isso em conta para podermos nos situar a seu lado. Só respeitando seus mecanismos de autodefesa e tomando seus atos como decisões próprias, como inventos para se darem um “certo” lugar, é que poderemos nos aproximar de uma outra maneira e conectar nossos dois mundos.
Trata-se de aprender a falar a sua “língua” e de compreender como funciona a subjetividade de uma pessoa com autismo. Estar ao seu lado implica em arriscar-se a estar junto com alguém que funciona com categorias diferentes das nossas e, ainda que não pareça, se esforça para compreender o mundo que o rodeia e fazer nele um lugar para si. Essa trajetória se compõe de perguntas próprias e de busca de respostas é o que nós todos fazemos. Esse é nosso próprio processo subjetivo, nosso caminho para construir uma realidade para nós mesmos. As crianças com autismo também o fazem, mas com mais dificuldade precisamente por terem se detido no acesso à linguagem. Se nós não levamos em conta esse projeto subjetivo, deixamos de lado o mais autenticamente humano delas. Nós podemos paradoxalmente encontrar-nos com crianças que sabem usar palavras para demandar ou indicar, mas que não podem dizer nada de si mesmas. E inclusive elas podem ter uma verdadeira desorganização mental quanto às explicações que elas tentam dar sobre aquilo que lhes interroga ou lhes preocupa
verdadeiramente.
É a partir dessa perspectiva clínica, de compreender aquele que não funciona necessariamente com nossas categorias, que podemos dar início a um tratamento que esteja à altura de seu autismo.
Há um salto e uma diferença entre pronunciar e repetir palavras, e falar com os outros. Para poder aceder à função fundamental da palavra que é a de falar com o outro, dizer algo a alguém, é necessária a interação com essa outra pessoa enquanto tal. E essa interação não passa unicamente por tomar essa pessoa como aquela que pode fornecer aquilo que a criança demanda, senão por uma interação entre os dois que vá além de sua necessidade concreta em um momento preciso. Apesar da demanda ser um primeiro passo na interação entre dois seres humanos, ela não é suficiente. Para que possamos falar de interação entre duas pessoas, entre a criança e o adulto nesse caso, nenhuma das duas pessoas pode permanecer reduzida a um objeto. E isso se resumiria a permanecer reduzido a um objeto (como um distribuidor automático, por exemplo) se a única função do adulto fosse, ao simples fato de escutar por exemplo a palavra “chocolate”, simplesmente se limitar a dá-lo. Não que isso não possa ser feito, mas se ela se reduz apenas a essa função, irão decorrer duas consequências disso:
-         A palavra permanece reduzida a um signo e não atinge a dimensão de símbolo
-         A interação social entre os dois não ocorre, quer dizer que não se atinge a outra função fundamental da palavra: o diálogo.

Aliás, no caso em que se utiliza um bombom como recompensa para que ela diga uma palavra, esta também permanece reduzida à função de signo. Além disso, forçar a emissão das palavras é contra producente. Isso é negativo porque o forçamento faz a criança recuar ainda mais na aquisição espontânea da linguagem.
Se a palavra da criança se reduz a um signo, mesmo se ela tem um valor comunicativo, isso não atinge a outra função fundamental da palavra que é o diálogo. Para que haja um diálogo, a subjetividade deve que estar em jogo. Para isso, tornar possível para a criança o acesso à tolerância da subjetividade dos outros, com o que isso comporta de imprevisibilidade, mas sem forçá-la a dizer e lhe dando seu tempo, assim como lhe oferecendo recursos para que possa fazer suas escolhas, é fundamental para aceder ao diálogo.
Podemos entender agora como a recusa da criança autista aos outros lhe dificulta aceder à palavra: a função de falar com os outros e de escutá-los aceitando suas diversas maneiras de se explicarem.

Tradução : Cristina Drummond

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