A criança com autismo se isola das pessoas. Foge do olhar e da voz dos outros, sobretudo quando se fala diretamente com ela.
O que caracteriza a voz humana e o olhar que faz com que se fuja deles?
Tanto
o olhar como a voz implicam a subjetividade daquele que olha ou daquele
que fala. Portanto, nesse âmbito há sempre uma dimensão do
imprevisível. Não é difícil observar como a criança autista foge do
olhar e da fala dos outros. Através dos testemunhos dos autistas podemos
compreender que o sentido da comunicação não é evidente para eles. Isso
porque falar não consiste apenas em passar informações, mas porque as
palavras, ao serem ditas, deixam escapar os elementos propriamente
subjetivos da pessoa que fala. E isso é o que retém a criança autista e
faz com que ela se afaste. É como se ela se perguntasse: “Por que ele
fala comigo? O que ele quer de mim?” Diante da dificuldade de dar
sentido a essas perguntas, ela pode se sentir invadida por um sentimento
de estranheza e de angústia.
Qual é a consequência dessa recusa da voz, das palavras dos pais, dos educadores e do resto das pessoas que a rodeiam?
A
consequência de tudo isso é que, ou bem ela não fala e se mantém num
mutismo ou, se concede em fazê-lo, ela se limita à repetição de uma
palavra ou de fragmentos de frases que escutou em algum lugar.
Às vezes as palavras que ela escuta são apenas “ruído” para ela e ela guarda apenas algumas que lhe interessam particularmente.
Por que tanta dificuldade para falar?
Porque não é a mesma coisa compreender uma linguagem, inclusive conseguir pronunciar palavras, do que falar.
Há
uma distância e uma diferença entre pronunciar e repetir palavras, e
falar com os outros. Para poder aceder à função da fala capaz de se
organizar num dizer ao outro, é necessária a interação com essa outra
pessoa. Portanto, a recusa da criança autista aos outros lhe
impossibilita ter acesso a essa função fundamental da palavra: a função
de falar com os outros assim como aquela de escutar os que a rodeiam
aceitando suas diferentes maneiras de se explicar.
O testemunho de Donna Williams, uma pessoa com autismo, nos ensina sobre a diferença entre repetir as palavras e utilizá-las para falar: Eu
quero um guia que me siga. Estou num mundo de palavras que não me
servem para falar. Eu gostaria de sair dele para compartilhar meu mundo
com os outros. E os outros com o meu.
O que fazem as pessoas com autismo?
Como elas se organizam se vivem a presença dos outros de maneira tão intrusiva e isso lhes impede de aceder à função da fala para se organizar simbolicamente?
O que elas fazem, além dessa operação de isolamento e de defesa?
As
crianças com autismo tratam de fazer para si um lugar na vida, a partir
de si mesmos e a partir de um objeto que pode ser qualquer um que
escolham e que, de alguma maneira, poderíamos dizer, as complete.
Se
nos fixamos no que elas fazem e não naquilo que supostamente deveriam
fazer, poderemos captar sua intenção de alcançar aquilo de que carecem.
Com efeito, suas repetições, seu jogos de alternância (abrir-fechar,
ir-vir, acender-apagar) são esboços, ainda que falhos, para alcançar o
simbólico; quer dizer, para ordenar simbolicamente o mundo.
Estas
alternâncias são às vezes consideradas como estereotipias, condutas sem
nenhuma função e se opta por tentar suprimi-las. Entretanto, temos que
levar em conta que se trata de algo decidido que a criança faz, algo que
lhe serve de algum modo para se acalmar, por exemplo. É fundamental
levar isso em conta para podermos nos situar a seu lado. Só respeitando
seus mecanismos de autodefesa e tomando seus atos como decisões
próprias, como inventos para se darem um “certo” lugar, é que poderemos
nos aproximar de uma outra maneira e conectar nossos dois mundos.
Trata-se
de aprender a falar a sua “língua” e de compreender como funciona a
subjetividade de uma pessoa com autismo. Estar ao seu lado implica em
arriscar-se a estar junto com alguém que funciona com categorias
diferentes das nossas e, ainda que não pareça, se esforça para
compreender o mundo que o rodeia e fazer nele um lugar para si. Essa
trajetória se compõe de perguntas próprias e de busca de respostas é o
que nós todos fazemos. Esse é nosso próprio processo subjetivo, nosso
caminho para construir uma realidade para nós mesmos. As crianças com
autismo também o fazem, mas com mais dificuldade precisamente por terem
se detido no acesso à linguagem. Se nós não levamos em conta esse
projeto subjetivo, deixamos de lado o mais autenticamente humano delas.
Nós podemos paradoxalmente encontrar-nos com crianças que sabem usar
palavras para demandar ou indicar, mas que não podem dizer nada de si
mesmas. E inclusive elas podem ter uma verdadeira desorganização mental
quanto às explicações que elas tentam dar sobre aquilo que lhes
interroga ou lhes preocupa
verdadeiramente.
É
a partir dessa perspectiva clínica, de compreender aquele que não
funciona necessariamente com nossas categorias, que podemos dar início a
um tratamento que esteja à altura de seu autismo.
Há
um salto e uma diferença entre pronunciar e repetir palavras, e falar
com os outros. Para poder aceder à função fundamental da palavra que é a
de falar com o outro, dizer algo a alguém, é necessária a interação com
essa outra pessoa enquanto tal. E essa interação não passa unicamente
por tomar essa pessoa como aquela que pode fornecer aquilo que a criança
demanda, senão por uma interação entre os dois que vá além de sua
necessidade concreta em um momento preciso. Apesar da demanda ser um
primeiro passo na interação entre dois seres humanos, ela não é
suficiente. Para que possamos falar de interação entre duas pessoas,
entre a criança e o adulto nesse caso, nenhuma das duas pessoas pode
permanecer reduzida a um objeto. E isso se resumiria a permanecer
reduzido a um objeto (como um distribuidor automático, por exemplo) se a
única função do adulto fosse, ao simples fato de escutar por exemplo a
palavra “chocolate”, simplesmente se limitar a dá-lo. Não que isso não
possa ser feito, mas se ela se reduz apenas a essa função, irão decorrer
duas consequências disso:
- A palavra permanece reduzida a um signo e não atinge a dimensão de símbolo
- A interação social entre os dois não ocorre, quer dizer que não se atinge a outra função fundamental da palavra: o diálogo.
Aliás,
no caso em que se utiliza um bombom como recompensa para que ela diga
uma palavra, esta também permanece reduzida à função de signo. Além
disso, forçar a emissão das palavras é contra producente. Isso é
negativo porque o forçamento faz a criança recuar ainda mais na
aquisição espontânea da linguagem.
Se
a palavra da criança se reduz a um signo, mesmo se ela tem um valor
comunicativo, isso não atinge a outra função fundamental da palavra que é
o diálogo. Para que haja um diálogo, a subjetividade deve que estar em
jogo. Para isso, tornar possível para a criança o acesso à tolerância da
subjetividade dos outros, com o que isso comporta de imprevisibilidade,
mas sem forçá-la a dizer e lhe dando seu tempo, assim como lhe
oferecendo recursos para que possa fazer suas escolhas, é fundamental
para aceder ao diálogo.
Podemos
entender agora como a recusa da criança autista aos outros lhe
dificulta aceder à palavra: a função de falar com os outros e de
escutá-los aceitando suas diversas maneiras de se explicarem.
Tradução : Cristina Drummond
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