Se a língua é o patrimônio de um povo, nossas crianças são despossuídas: só 20% delas terminarão o ensino médio dominando plenamente a leitura e a escrita
Quando a engenheira Marília, de São Paulo, lia as lições de casa da
filha, então no 2o ano do ensino fundamental, entrava em pânico: uma
sucessão de erros ortográficos, como "páçaro" "caxoro", "caza", letras
invertidas, frases que iniciavam sem letra maiúscula e nenhuma
pontuação. O pior, para ela: nenhuma observação da professora indicando o
erro ou pedindo correção. A mãe chorava, sentindo um misto de fracasso,
indignação e medo pelo futuro da filha, no qual investia tanto, tendo
escolhido para ela uma escola de elite.
O nome é fictício, mas a situação é real e comum. Sem compreender as
linhas metodológicas que influenciam o trabalho de alfabetização,
tampouco bem explicadas pelas escolas, e assustados pelas estatísticas
alarmantes - só 20% dos indivíduos com ensino médio completo são
considerados plenamente alfabetizados, segundo o Instituto Paulo
Montenegro, ligado ao Ibope -, os pais veem nos erros ortográficos os
primeiros sintomas de uma doença fatal na sociedade do conhecimento: a
incapacidade de ler e escrever corretamente.
A língua é um patrimônio cultural que une e identifica um povo, e o
domínio da norma culta é marca de diferenciação social, sinal de boa
formação e inteligência. Por isso, é compreensível que esse seja um
ponto tão sensível para os adultos. Contudo, é preciso calma para
compreender um problema de muitas faces. Uma delas é a própria lacuna de
expectativas entre o que os pais esperam da alfabetização dos filhos e o
que preconizam as modernas tendências do ensino de português.
Para Luiz Prazeres, mestre em linguística pela UFMG, um dos
especialistas que elaboraram as bases do Sistema de Avaliação do Ensino
Básico (Saeb), a confusão começa quando se entende o ensino de língua
materna no Brasil como o ensino da língua como um todo. "Os pais
consideram que um aluno é brilhante em língua portuguesa se ele conhece
as regras gramaticais e sabe conjugar verbos em todos os tempos e modos.
No entanto, o ensino hoje está voltado para a língua como instrumento
de comunicação, direcionado para o entender e se fazer entender em
situação real de fala, leitura e escrita."
identemente, o foco na expressão e na compreensão não tem de implicar o
abandono dos aspectos formais do idioma. É dever da escola preparar os
alunos para utilizar a língua portuguesa nas mais diversas situações -
seja em um bate-papo no MSN, seja em uma carta a uma autoridade. Segundo
Prazeres, a linguagem deve ser vista como uma exigência social, assim
como a roupa que se usa, de acordo com o lugar a que se vai: na piscina,
roupa de banho; no trabalho, roupa mais discreta. A preocupação em
formar leitores e escritores fluentes faz com que o ensino dos aspectos
formais acabe ficando em segundo plano no processo inicial de
alfabetização - algo difícil de compreender para os adultos de hoje,
acostumados com o peso da caneta vermelha do professor desde os
primeiros passos na escola.
Aprender por mágica
O conflito de visões se acentuou com a disseminação das orientações
construtivistas nas escolas. O construtivismo não é um método de ensino,
mas uma concepção teórica que trouxe, entre outras proposições, a noção
de que o conhecimento é construído pelos alunos com base no confronto
entre o próprio repertório de ideias e experiências e o ambiente. Na
alfabetização, isso implica reconhecer que desde cedo as crianças têm
contato com as palavras e imaginam como se formam.
Há uma sequência comum a todos, como explica a pesquisadora Andréa
Luize, do Núcleo de Práticas de Linguagem da Escola da Vila, em São
Paulo: primeiro, a criança descobre que palavras e desenhos são
diferentes; depois, que as palavras são feitas de símbolos, que precisam
existir em variedade e quantidade; mais à frente, que há
correspondência entre sons e símbolos; e assim por diante. O professor
atua como facilitador, provocando o aluno a formular hipóteses e
avançar.
A introdução de uma visão para a qual muitas escolas e professores não
estavam preparados gerou muita confusão, especialmente pela falsa ideia
de que o professor nunca deveria intervir. "Resultou disso que as
crianças acabavam não tendo nenhum contato com regras até uma idade
avançada", diz a educadora Claudia Tricate, da Escola Mágico de Oz, em
São Paulo. "Parecia que tudo iria se reorganizar magicamente, sem a
intervenção de um interlocutor competente, ou seja, o
professor",acrescenta Claudia Siqueira, diretora do Colégio Sidarta, em
São Paulo.
Não foi bem o que se viu. Então, deve-se ou não corrigir os erros das
crianças na fase de alfabetização? De forma geral, a resposta é sim,
desde que sejam respeitados critérios, entre eles o de que as normas
cobradas tenham sido ensinadas anteriormente. De nada adianta lascar a
caneta vermelha para corrigir "caza"se as crianças ainda estão
aprendendo sobre os sons idênticos de algumas letras. "Não se trata de
relevar ou não a escrita correta, mas de permitir que as crianças façam
determinadas aprendizagens que são, de fato, hierarquicamente prévias",
explica Andréa Luize.
Outra questão é como será a intervenção do professor para corrigir o
erro. Nas visões mais contemporâneas da educação, em que se busca um
ensino que faça sentido para a vida do aluno, é importante que o
aprendizado do idioma partilhe dessa filosofia. O aluno deve ter a
oportunidade de se autocorrigir, compreendendo as características do
texto que produz e a necessidade de se adequar a diferentes normas.
"Exercitar tempos verbais em listas de frases ou em conjugações
isoladas, como ‘eu canto, tu cantas’, não faz com que as crianças
aprendam sobre a função dos verbos e o uso que podem fazer deles para
escrever melhor",diz a pesquisadora Andréa Luize.
A família pode ajudar? Sempre. Mas é preciso conter a ansiedade comum
dos adultos de passar a borracha em tudo, o que a educadora Mônica
Padroni, da Escola Projeto Vida, em São Paulo, chama de visão higienista
do texto - e que pode afetar até a autoestima de uma criança em
processo de alfabetização.
Ler para escrever bem
Em vez de se tranquilizar ao ver que os filhos sabem usar o ss ou o ç,
os pais precisam observar se a escola é capaz de produzir crianças e
jovens capazes de aprimorar a forma como expõem ideias e pensamentos na
linguagem escrita. "Esse é o grande problema na educação brasileira",
afirma Gisele Gama Andrade, pesquisadora e consultora do Ministério da
Educação que coordenou por anos a correção de redações do Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem). Segundo Gisele, a maioria dos textos dos alunos
brasileiros não consegue expressar um ponto de vista. Para quem pensa
que se trata de um problema da escola pública, ela conta sua experiência
na banca do Instituto Rio Branco, que forma os futuros diplomatas.
"Também lá se pode ver que os argumentos apresentados pelos alunos em
seus textos são repetitivos, comuns e fracos", diz. Isso decorre, em
parte, da precariedade do trabalho de produção de textos na escola. "O
que normalmente se vê é uma atividade a ser realizada em uma aula de 50
minutos, com orientação rasteira e critérios de correção obscuros.
Escrever exige planejamento", observa João Hilton Sayeg de Siqueira,
doutor em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Mas o maior desafio para as escolas ainda é o de formar cidadãos com
hábitos sólidos de leitura. "A pessoa que lê com frequência se torna
mais apta a enfrentar os desafios do mundo contemporâneo e a dialogar
com eles. Em nossa sociedade letrada, ler é questão de sobrevivência",
considera Luiz Prazeres. A leitura também formará cidadãos mais aptos a
escrever melhor e a conhecer as normas da língua. Nessa missão, a escola
esbarra na concorrência de uma era de predomínio das imagens e na
dificuldade de se aproximar do cotidiano de crianças e jovens.
Estratégias como perguntar o que a história quer dizer tornam a leitura
uma tarefa aborrecida e afastam os jovens de um prazer que quase todos
eles tinham quando crianças.
Nesse quesito, a participação dos pais é fundamental. Por que não
visitar a biblioteca escolar e ver se é um espaço criativo? Ao mesmo
tempo, é preciso abrir oportunidades para as crianças, como passeios a
livrarias, leituras conjuntas e outros estímulos que envolvam o prazer
do texto. Aqui, gibis são leituras tão válidas quanto os clássicos: o
principal é criar um ambiente convidativo, seja na escola, seja em casa,
e nunca perder de vista o potencial do texto como universo sem
fronteiras para a imaginação.
Paulo de Camargo
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