Em geral as doenças mentais provocam ao indivíduo um sofrimento psíquico intenso, podendo ocasionar isolamento e grandes dificuldades para conduzir sua vida e seus projetos.
A infância é um momento da vida que exige cuidado, tanto por parte da família quanto do Estado. Por isso a criança, para realizar suas aprendizagens e experiências de sociabilização, conta, além do espaço familiar, com um espaço institucional ao qual é socialmente endereçada: a escola.
A instituição escolar marca a passagem da criança do espaço doméstico e, portanto, privado, para o espaço público. Nela se realiza uma transmissão formal da cultura com suas regras, valores, costumes e saberes. Nela se produzem experiências decisivas também para a constituição, nos encontros assimétricos – com adultos, em relação aos quais a criança tem a chance de estender suas referências de identificação dos pais aos professores – e simétricos – com semelhantes, pares da mesma idade, em relação aos quais a criança tem a possibilidade de enlace na construção de amizades.
No entanto a escola nem sempre foi esse lugar de circulação e pertencimento; é marcada inicialmente em sua história pela exclusão de mulheres, negros e deficientes. A “escola para todos” é uma conquista recente, do século 20, ainda em vias de construção. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) estabeleceu pela primeira vez o direito de todos à educação. A partir disso, a escola passa a ter a função de incluir as diferenças, sem segregá-las e erradicá-las, contribuindo para a formação de todas as crianças e consequentemente de uma sociedade mais democrática.
Em complemento a isso, recentemente, como resultado de um longo processo histórico de luta pelo reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiências e/ou transtornos mentais, foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146 – Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 06 de julho de 2015). Torna-se responsabilidade exclusiva da instituição escolar a adaptação do espaço e de sua equipe profissional para a inserção de qualquer aluno com necessidades diferenciadas para o ensino, sem impedir que a família possa complementar tal equipe, caso seja de seu interesse, com profissionais externos à instituição.
Vivenciamos, com isso, um marco importante na história de conquistas em direção à inclusão escolar. No entanto, cabe considerar algumas questões:
– Assegurar por lei a inclusão garante um lugar de aluno na comunidade escolar?
– Como transformar a escola em um espaço coletivo que, de fato, inclua cada criança em sua singularidade e diferença?
A lei, sem dúvida, convoca os envolvidos a pensar e repensar suas estratégias para a construção de uma “escola para todos”, mas não assegura que lugar será esse para cada criança e por quais caminhos se guiarão os diferentes processos de inclusão.
Para além dos diagnósticos, síndromes, deficiências físicas ou mentais, é fundamental que as instituições que recebem os alunos ditos de inclusão possam se perguntar sobre cada sujeito em questão: o que a criança sabe e o que não sabe; do que gosta; como se relaciona com a aprendizagem, com os colegas, com os professores, com as leis, com o seu próprio corpo, com a linguagem, com a brincadeira (como ela brinca, se ela brinca).
Refletindo sobre essas observações, a escola pode chegar ao entendimento de que, em certos casos, há alguma dificuldade em jogo no que diz respeito a constituição da criança que não se restringe ao saber pedagógico. Com algumas crianças, a escola consegue exercer um trabalho inclusivo contando apenas com a parceria da família e da equipe de tratamento. Mas, em muitos momentos, isso não é suficiente para que a inclusão ocorra. AO invés de ela ser vivida como possibilidade, pode se tornar um imperativo tanto para a escola como para a família e, principalmente, para a criança. Nesses momentos, a experiência escolar deixa de sustentar um marco constituinte para a criança e pode passar a ser vivida como ameaça à sua constituição.
Sendo a instituição escolar o lugar social da criança, muitas vezes será na escola que sofrimentos significativos dos alunos que têm maiores dificuldades de fazer laço e de se apropriar daquele espaço aparecerão.
Testemunhamos diversas situações de crianças matriculadas em regime de inclusão, mas pertencendo a classes nas quais não têm condições de acompanhar os conteúdos do ponto de vista da aprendizagem, e, ao mesmo tempo, do ponto de vista da sociabilização. Esta situação de inclusão em falso, via de regra, desencadeia graves atuações das crianças pelas quais se denuncia a exclusão que subjaz às suas inclusões fictícias, algumas vezes culminando em formações delirantes de cunho persecutório ou de fantasias de desaparecimento com grave angústia e custo psíquico.
Na medida em que sabemos da importância inquestionável do Outro social, representado pela escola, pela figura do professor e pelos colegas, para a constituição psíquica e para as aquisições que fazem parte do desenvolvimento (aprendizagem, hábitos, psicomotricidade e linguagem), é preciso que possamos interrogar: por quais outros caminhos a inclusão dessa criança pode se tornar mais possível?
Nesse sentido, o dispositivo do Acompanhamento Terapêutico (A.T.) na escola pode ser importante como estratégia para a inclusão. Ao ocorrer desde o referencial psicanalítico, trabalha a partir do caso a caso, escutando o sujeito na tentativa de produzir o laço social e auxiliar a criança a sustentar um lugar de pertencimento, desde o qual lhe faça sentido compartilhar.
Existem diferentes nomenclaturas para esse dispositivo que comumente são usadas como sinônimos. Porém há uma diferença importante na origem e no significado que cada uma carrega, seja ele tutor, acompanhante pedagógico, mediador, acompanhante escolar. Em cada um deles sublinha-se uma função do profissional.
A denominação Acompanhamento Terapêutico, que teve sua origem na Luta Antimanicomial, carrega, através da palavra terapêutico, um efeito do trabalho e não uma especificidade de saber ou um lugar concreto. Centra-se na possibilidade de dar o suporte necessário ao laço do sujeito com um contexto social, nesse caso, o escolar. Sublinha-se nesse modo de intervenção o necessário diálogo clínico-escolar, a fim de poder formular estratégias possíveis diante das dificuldades apresentadas entre o coletivo da escola e a singularidade de cada criança, funcionando como um acompanhante que pode se tornar dispensável uma vez que a possibilidade desse laço estiver estabelecida.
Até lá, por estar lado a lado com a criança, o A.T. poderá intervir em ato e in locuna questão apresentada, fazendo a ponte entre o aluno e seus colegas, entre o aluno e a aprendizagem. Sendo assim, o A.T. poderá propiciar as condições para mudanças na posição daquela criança frente ao mundo e, no caso específico, frente à escola, de modo a não ser apenas um espaço para ir e sim um lugar que permita que ela se reconheça e seja reconhecida na posição de aluno.
Além disso, as crianças em processo de inclusão – por suas dificuldades – muitas vezes personificam e representam para funcionários da escola, colegas e familiares um lado estranho, assustador ou exógeno. Nesse momento,a mediação do A.T. também é importante para que seja possível desmontar formações defensivas que surgem como efeito da angústia no encontro com as diferenças. Não contar com uma mediação pela qual se torne possível atravessar, no espaço coletivo, o temor que cada um tem no encontro com suas próprias faltas e imperfeições pode ter como efeito o isolamento ainda maior da criança.
Muitas vezes, a lógica do ter que incluir evita a questão mais importante, que é a de como incluir. É necessário respeitar e admitir a diferença, sem grandes juízos de valores, e, mais ainda, podendo oferecer espaços e estratégias que favoreçam as potencialidades das diferentes formas de ser, mais do que intensificar suas limitações. Sendo assim, é importante pensarmos em como a escola, os professores e a sociedade em geral lidam com a diferença e como transformar as leituras atuais sobre esta temática, de modo a desconstruir alguns paradigmas (normal versus anormal, eficiência versus deficiência, melhor versus pior) que prejudicam a todos e potencializam a segregação e pré-conceitos.
Nesse contexto, o A.T., longe de ter que funcionar como uma normativa institucional (o que de antemão eximiria a escola de refletir sobre suas possibilidades de encontro com a criança), pode sim ser um recurso terapêutico possível e favorável na construção do como ir propiciando processos inclusivos pela mediação da sociabilização e aprendizagem do laço criança-escola.
Assim, espera-se que, no caso a caso, o A.T. possa ir se tornando cada vez mais dispensável, na medida em que o laço da criança com os outros se produz, ao dar lugar à construção de novas estratégias tanto do lado da criança, dos colegas, dos pais, da família e da escola. Ao mesmo tempo, essas experiências compartilhadas de inclusão com o diálogo clínico-escolar e com a sustentação in locu do A.T., quando necessário, vão deixando o rastro de encontros possíveis. Afinal as escolas também estão aprendendo com a inclusão e por isso precisamos tomá-la, antes de mais nada, como um processo em construção, para cada um, mas também para a escola e sociedade.
Este texto foi produzido em parceria entre Julieta Jerusalinsky, Carla Soares Perego Moreira, Julia Fatio Vasconcelos, Marcela Morgado Cury, Mariana Facanali Angelini e Manuela Borghi Crissiuma*, que trazem a experiência do acompanhamento terapêutico em contexto escolar na realização de processos inclusivos.
- Carla Soares Perego Moreira, Julia Fatio Vasconcelos, Marcela Morgado Cury. Mariana Facanali Angelini e Manuela Borghi Crissiuma são psicólogas e acompanhantes terapêuticas da Equipe Ponte-SP.
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